quinta-feira, 30 de dezembro de 2021

The World Ends With You - Urbanizando o JRPG

O DS foi a casa de muitas ideias, principalmente no Japão. Posso até dizer que foi o último console mais experimental de verdade, claro que a Nintendo trouxe coisas como o WiiU e Switch, mas nenhum deles recebe jogos focados no console, até mesmo o 3DS não foi tão ousado. Provavelmente, as pessoas e estúdios já estavam sem saco de tentar lidar com gimmicks, tentar tirar uma ideia do fundo da mente pra usar de duas telas e uma touchscreen.

Assim como o Wii, os recursos do console acabam sendo uma faca de dois gumes, tendo algum uso bom e criativo, e uma porrada de coisa desnecessária. Consigo lembrar de algumas jóias do portátil como Hotel Dusk, Ace Attorney, Ghost Trick, LoZ Phantom Hourglass, Time Hollow e 9 Hours 9 People 9 Doors. Que utilizam ambas as telas e controle de toque muito bem, às vezes, até o microfone. Mas sempre tem o mais ousado que tentou fazer um pouco de tudo, e falarei não apenas dele como sua sequência, que, surpreendentemente, trouxe muitas das qualidades de um jogo portátil para a nova geração.

Lançado no Japão em 2007, The World Ends With You é um Action RPG que utilizava praticamente tudo do pequeno console, é possivelmente o jogo mais DS já concebido. Utilizando a tela de toque para controlar o personagem principal, Neku, enquanto a tela de cima mostrava sua parceira, Shiki, que era controlada automaticamente, ou usando os botões. O sistema dos Pins, por algum motivo, traduzidos como bótons aqui no Brasil (o que é estranho, mas melhor que chamar de “broche”), utilizam diversos jeitos de usar a stylus para atacar os adversários, ou outras funções do DS, como gritar no microfone.

TWEWY é bem divisivo quando se trata de jogabilidade, são mecânicas de combate únicas que usam o portátil no seu máximo. O ideal é o jogador prestar atenção na tela de baixo, utilizando a touchscreen, até passar um "disco verde" para a tela de cima, onde você faz um combo com o outro personagem, repassando esse disco até encher a barra de especial. Longe de ser algo fácil de se adaptar, mas acaba se tornando quase automático quando o jogador se acostuma.

Na tela superior, você tem que ficar ligado para escolher uma das cartas, procurando sempre fazer a "trinca" das cartas certas. Acertando as sequências e repassando o disco entre personagens, garante um golpe especial com os dois personagens. Acho que a gameplay é boa, só não acho fantástica. É curioso ver como ela funciona bem em certos momentos, porém pode ser muito irritante contra alguns chefes e inimigos, e mesmo jogando bem, o seu objetivo parece apenas ser fazer a sequência certa para garantir um ataque especial e usá-lo para ver uma pequena cinematic, o que se torna meio chato.

Acho que o fato mais importante é que a estrutura dos encontros é viciante, já que você tem que scanear o ambiente, avistar os “Noises” e selecioná-los para entrar em combate. Quanto mais inimigos você selecionar, mais aumenta o drop rate de equipamentos e as batalhas serão sequenciais, mantendo a mesma barra de vida entre as lutas. Como eu sempre procurava fazer um pouco de tudo, eventualmente ficava algum tempo em certas áreas fazendo grinding sem uma necessidade real, apenas por pura diversão.

Felizmente, há algumas opções para facilitar o jogo. A dificuldade, com inimigos menos agressivos e que dão menos dano, e o seu nível de experiência, que aumenta a barra de vida. Dificuldades diferentes determinam drops diferentes dos inimigos e quanto menos experiência, mais alto o drop rate dos inimigos. Além disso, o boneco da tela de cima, pode ser controlado pela IA, que fará movimentos básicos e não otimizados, porém ajuda quem não conseguiu se adaptar com a jogabilidade dual-screen. Então as dificuldades maiores são questões de quem quiser se aprofundar mais nas mecânicas e busca coletar todos os botóns, não sendo prejudicial para o jogador que quer apenas acompanhar a história e não se preocupa com a jogabilidade. 

Falando em história, a própria premissa é construída para ser adequada ao estilo de jogo de TWEWY, onde somos apresentados a Neku, um adolescente anti social, com seus fones de ouvido, se isolando das pessoas ao seu redor. O protagonista acorda em meio ao cruzamento de Shibuya, se levantando no meio de milhares de pessoas, mas nenhuma parece perceber sua presença. Lentamente, ele vai aprendendo que foi morto, apesar de não se lembrar disso, e foi colocado no Reaper’s Game.

O "Jogo do Ceifador" é um evento de 7 dias que rola em Shibuya no UG, Underground, onde pessoas mortas buscam uma forma de voltar à vida na realidade, chamada de RG, Realground. Os jogadores têm que enfrentar monstros chamados Noise, geralmente como parte do jogo, e realizar diversas tarefas com esperança de reviver. 

Podendo interagir de algumas formas com as pessoas vivas de Shibuya sem elas saberem, porém você pode entrar em estabelecimentos específicos do mundo real para comprar suas roupas e alimentos. O Reaper’s Game não é jogado sozinho, e Neku descobre isso de repente, quando uma garota firma a “parceria” e criando uma dupla.

Todos esses aspectos são feitos para funcionarem com a ideia de ser um jogo e, principalmente, um jogo de DS. Como já mencionado, um personagem é controlado na tela de baixo, com o touch, enquanto a de cima nos controles padrões. Elementos como as lojas são formas de comprar equipamento e os alimentos são formas de aumentar seus stats, sendo que cada personagem tem sua barra de fome, que é resetada após um dia, e suas preferências nas comidas. Sem contar que cada vendedor, conforme você vai comprando em seu estabelecimento, vai ganhando mais afinidade contigo, garantido diálogos novos ao te ver e novos itens para comprar.

Até religando o meu 3DS e continuando meu save, já vejo uma tela dizendo quantos dias desde a última jogatina, além de me presentear com alguma experiência para meus bótons equipados. O que leva a outro sistema legal, os bótons vão além de serem suas habilidades em batalha, eles são o ponto principal do “estilo” de Shibuya. Cada bóton é atrelado a alguma marca de roupas, então usá-lo em batalhas vai aumentar a popularidade da marca em uma área de Shibuya.

Enquanto muito pode se dizer em relação a jogabilidade, é inegável que todo sistema ao redor de TWEWY é fantástico. Ele lhe dá as ferramentas certas para criar um método único de jogar um JRPG, não só modernizando o setting, assim como as mecânicas básicas, como a fidelidade dos vendedores, já que todo JRPG tem suas lojinhas, mas essas adições básicas fazem a diferença tanto como jogo, quanto a ambientação.

Shibuya é basicamente uma metrópole mega movimentada, cheia das mais diversas pessoas. Indo dos jovens descolados de diversas tribos, até o salaryman japonês padrão. O que dá o charme a esse mundo é o quanto TWEWY se importa de apresentar esses aspectos como internet, moda, música, tribos e ideias. O visual e música não são só importante para o jogador, como também para esse universo. Ele leva coisas do cotidiano como algo importante para a identidade da cidade e de seu povo.

Para quem conhece outros clássicos da Square, já bate de cara com o character design de Tetsuya Nomura. Enquanto o artista é conhecido pela sua extravagância em Final Fantasy e Kingdom Hearts, em TWEWY, seus designs são mais realistas e modernos, sem deixar de terem sua peculiaridade. É outro aspecto que ajuda nesse misticismo urbano. Há tanta coisa para se dizer sobre o jogo que poderia ficar horas falando só dessa parte de jogabilidade, além da estética e ambientação e como funcionam bem no DS, mas a brevemente mencionada narrativa é um dos pontos mais fortes de TWEWY.

Já falei como seu personagem é um sujeito distanciado da sociedade e acaba entrando numa situação onde ele precisa cooperar com outra pessoa para vencer. Neku começa como um adolescente revoltado e babaca, principalmente quando pareado com sua parceira Shiki. O rapaz é totalmente egoísta e trata ela muito mal, ainda mais considerando que a garota é gentil e educada. Mas a natureza do jogo vai depender que Neku aprenda a ser mais humilde e confiar nas pessoas, pois os Reapers vão jogar sujo para deixar os jogadores mais desesperados.

Obviamente, recomendo The World Ends With You, principalmente no Nintendo DS. Como um bom rato de emulação, minha primeira experiência foi com emuladores e, eventualmente, tive a chance de experimentá-lo na sua forma original. Tem um anime que o traço é bem bonito, porém não sei em relação como foi adaptada a história. Pelos 3 episódios que vi, me pareceu um pouco corrido. Também não sei dos ports de celular e o do Switch, me parecem mais feios e com mudanças para se adequarem às suas plataformas, então tem diferenças significativas, fora o conteúdo adicional.

Por fim, antes de entrar em águas novas, gostaria de dizer que o título ocidental, The World Ends With You, é genial, sendo que no Japão é chamado de Subarashi Kono Sekai, ou “É Um Mundo Maravilhoso”. Ambos nomes fazem sentido com a proposta da franquia, mas “O Mundo Acaba com Você” soa bem único e um dos personagens utiliza-o em uma frase, que é tem um peso na história.

Como já falado, TWEWY teve versões atualizadas com Solo Remix, para celulares, e Final Remix, para o Switch. Entre mudanças de controle, sprites passados em um filtro de sharpening porco e novas músicas, também houveram alguns gostinhos de um novo jogo, um através de um final secreto mostrando uma personagem nova e um capítulo extra em Final Remix.

Só lembrando que o original saiu em 2007, Solo Remix em 2012 e Final Remix em 2018, logo a espera foi enorme e finalmente foi revelado, em novembro de 2020, NEO: The World Ends With You.

NEO pega a mesma proposta do antecessor e mistura, amplia e faz algo que, por mais que seja inteiramente novo, tem o mesmo espírito. Voltando a Shibuya, alguns anos após o primeiro jogo, dois amigos estão dando uma volta pela cidade, fazendo compras e se divertindo. O "protagonista" Rindo, um garoto normal, usuário assíduo de redes sociais, e Fret, seu amigo bem humorado e falador, acabam entrando no Reaper's Game sem perceberem. Sem nenhuma memória de terem morrido ou algo parecido, os jovens se deparam com essa nova versão do jogo onde, ao invés de duplas, times entram em tarefas de acumular pontos para serem ressuscitados.

Eventualmente, o grupo é nomeado Wicked Twisters e vai adquirindo alguns membros, nada que seja absurdo, comparado aos outros times que já estão estabelecidos há tempos. Entre eles, estão o Ruinbringers, um pequeno e misterioso grupo, onde os integrantes estão ganhando o Reaper's Game há tempos, sempre ganhando e pedindo para continuarem lá.

Então, novamente, o jogador se encontra num jogo injusto e cruel. A diferença de NEO é a maior presença de outros Reapers e jogadores, o que dá uma dinâmica diferente à mesma fórmula de TWEWY. Há muitas similaridades ao anterior, é um pouco prejudicial não jogar o original antes, mas acho que NEO consegue se manter com suas próprias pernas por muitos de seus méritos.

Primeiramente, o sistema de combate é reformulado, mantendo muitas mecânicas, como os bótons, só que cada um é um personagem de seu grupo. Cada bóton tem um botão específico para ser usado, que não podem ser repetidos, além de haver outros delimitadores. A ideia é você montar uma build para tirar o máximo do combate, onde você deve atacar o inimigo até ele entrar num estado de stagger e alternar para outro ataque. Isso aumenta seu "groove", uma barra de golpes especiais, que se espalham pela tela durante a luta e com efeitos diferentes dependendo do elemento do último bóton usado.

Logo, é similar ao original, onde a ideia é ficar pulando entre personagens para dar golpes até conseguir um poderoso ataque, que felizmente não é só um vídeo passando. É muito mais fácil e convidativo que o anterior, sem perder sua essência de montar suas builds e seu jogo de ritmo, fora que os inimigos são desafiadores e possuem formas de interromper personagens, mesmos os que não estão sendo usados. O que força o jogador a sempre estar atento, mesmo sendo um campo de batalha bem caótico.

Outras mecânicas como a seleção de dificuldade para encontros, diminuir seu level e encadear batalhas com inimigos, ainda existem, e funcionam muito bem. Complementando isso, há uma "árvore de relacionamentos", mostrando todos personagens encontrados na campanha, que não serve apenas para ver suas histórias, mas também para adquirir upgrades, dificuldades novas e etc. O jogo vai apresentando coisas novas de pouco em pouco, até quebrando regras, como os limites de um bóton por botão.

É perceptível que esse não é um jogo de orçamento gigante da Square, devido às poucas cenas animadas, diálogos sem dublagem, cutscenes em forma de "motion-comic" e os gráficos menos generosos. O que não é um problema devido a estética e a apresentação serem fortíssimas.

O gráfico lembra um cel-shading básico de jogo de anime da era passada, mas raramente focando nos modelos dos personagens. A câmera é fixa durante as sessões de exploração de Shibuya, montando cenários bonitos da cidade, ainda complementando com um efeito de "fisheye" ao redor da tela. As sessões de combate focam em mostrar o campo todo, para poder focar tanto nos personagens quanto os inimigos. Apesar de diversos elementos na tela, raramente houve alguma queda de framerate, isso jogando no PC. E imagino que, pela otimização do port, deve rodar bem no Switch. Tem a cara que foi o console base do jogo.

O único problema de toda apresentação e interface, são os menus de bótons e equipamentos. Você tem opções para filtrar e localizar os itens certos, geralmente os mais novos, mas é bem bagunçado pelo nível de coisas que você obtêm. Lembrando também, até o momento, é um jogo exclusivo para a Epic Store e custando 300 reais, o padrão da Square no Brasil.

Dentre as diversas maravilhas de NEO, uma das que mais me surpreendeu foi o sistema de Psychs únicos dos personagens. Cada membro principal possui uma habilidade única, como Rindo podendo voltar no tempo e ter visões do futuro, o que é bem limitado para funcionar dentro da narrativa. No geral, são poderes que servem mais para a narrativa, porém um dos membros futuros do time ganha um botão de dash, permitindo que você se movimente mais rápido pelo cenário, só que não é só isso. 

O "Sound Surf" permite que você saia deslizando por Shibuya ao som da música atual, implementando uma batida única na faixa, onde o jogador precisa pressionar o botão no ritmo da batida para continuar correndo. Não é apenas uma ferramenta de movimentação, como acertar o ritmo aumenta um pouco do seu "groove", permitindo que você comece as batalhas com alguma porcentagem da barra de especial.

Infelizmente é limitada pelo fato de as áreas não serem muito grandes, e transitar entre elas faz entrar uma tela de loading. Mas não deixa de ser um conceito simples e muito legal e só imagino algo como TWEWY implementar um negócio tão básico, mas criativo e divertido. Isso, posso resumir, que é quase toda base de gameplay da franquia.

Por fim, a história é um dos pilares principais do jogo. Enquanto pode haver algumas similaridades e certos aspectos dependerem do original, a narrativa principal se carrega por si, principalmente pelo elenco principal. Você tem Fret, o jovem dinâmico e bobão, Nagi, uma otaku estranha e fangirl de um personagem de um jogo, e Rindo, que vive com sua cabeça focada numa tela de celular, principalmente em FanGO, um jogo de capturar monstrinhos (nada similar à uma certa franquia gigante com um jogo de celular que dominou o mundo por um tempo).

O que me surpreende é como cada um desses personagens é desenvolvido na trama. Mostrando que eles vão além de um arquétipo básico, tendo qualidades e defeitos humanos. Não são exatamente coisas mega dramáticas, são problemas que qualquer um pode ter, seja em se expressar, como se mostrar para os outros, como compreender e ser compreendido pelos outros. Falar da história é um território sensível, o ideal é não estragar as surpresas, então prefiro abordar por cima.

The World Ends With You é uma série como nenhuma outra no meio dos jogos. É um "verdadeiro RPG moderno", adaptando diversos aspectos tradicionais do gênero para um setting urbano e ainda implementando um fator mágico em coisas mundanas, como moda e música. Tendo mecânicas únicas, feito justamente para o Nintendo DS e se adaptando para novas plataformas, até chegar em NEO, que entende praticamente tudo o que fazia o original ser tão bom, e se excedendo num jogo magnífico.

A maior maldição acaba sendo a sua popularidade. Como visto, apenas existem dois jogos, o primeiro sendo requentado duas vezes e a sequência desse ano, e adaptações de mangá e anime. Então a Square-Enix tem algum cuidado com a IP, e procura não desgastá-la, ao contrário de outras séries, e os dois títulos da franquia são muito bons, criativos e distintos. O lado ruim é que ela não é tão popular quanto merece. Não é nada de orçamento grande, porém é feito com bastante esmero, só que passa debaixo do radar de muita gente.

Imagino que uma sequência vai demorar, provavelmente, vai haver alguma versão nova de NEO. Vejo muitos fãs culpando a falta de divulgação da SE, o que acho parcialmente verdade, porém, não consigo pensar se é tão atrativo assim para um público maior, como foi com Persona 5. Há muitos elementos parecidos, mas não acho que tenha tanto apelo.

Acho que o lançamento de NEO criou uma porta de entrada melhor para a série. O primeiro jogo não é exatamente a melhor coisa para emular, a versão de celular não parece muito atrativa, e a do Switch perde parte do charme do combate original. Se nenhuma das opções estejam disponíveis, vale a pena ver o anime para ao menos entender a história. Enquanto falo mais por cima do que experiência. Acho que qualquer tentativa de conhecer a franquia é bem vinda.

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