segunda-feira, 20 de março de 2023

Resident Evil: Entrando no Mundo do Survival Horror

Resolvi rejogar a trilogia original do PSX e Resident Evil 4 original em antecipação ao remake de RE4. Fazia um bom tempo que não jogava os quatro títulos, então uma revisita sempre é boa, principalmente para ter uma nova perspectiva desses clássicos. RE é uma franquia monstruosa, gerando várias iterações, coisas que vão além de videogame, e tudo começou num projeto pequeno que foi se tornando maior e conquistou diversos jogadores da geração do Playstation 1.

A Capcom possuía game designers que se tornaram influência em toda a indústria com IPs únicas. Street Fighter, Final Fight, 1984, Ghost n' Goblins e diversos outros são lendárias máquinas de fliperama e deram fama à empresa. Desde cedo, a empresa também focou em fazer jogos para consoles, o que deu uma vantagem futura em relação a outras desenvolvedoras que ficaram ligadas ao arcade. Exclusivos como Demon's Crest e Mega Man ajudaram cimentar mais a presença da marca, fora adaptações como DuckTales, Aladdin e a série Magical Quest, até chegar Resident Evil e levar para outro patamar.

Em março de 1996, Resident Evil foi solto ao mundo. A história de desenvolvimento já é conhecida, o básico é que sua origem veio da ideia de reviver Sweet Home, uma adaptação de um filme de terror japonês que virou um RPG de NES lançado em 1989. Com múltiplos personagens, clima sinistro, violência e finais diferentes, ele foi a base do que seria a nova franquia da Capcom. Seu diretor, Tokuro Fujiwara, idealizou esse projeto, mas preferiu passar o desenvolvimento nas mãos de um diretor mais jovem na compania, esse sendo Shinji Mikami, que já tinha dirigido duas adaptações de licenças famosas: Goof Troop e Aladdin. 

Ambos os títulos não têm o mesmo nível de sucesso, Aladdin é baseado no filme da Disney, o que gerou um sidescroller bem competente e vendeu bem devido ao sucesso do filme, enquanto Goof Troop parece ser mais conhecido entre nós, brasileiros. O “jogo do Pateta” era muito bom, oferecia uma experiência única, especialmente em co-op, apesar de ser curto e não termos recebido níveis de dificuldade diferentes na versão ocidental. Algumas características como dois personagens diferentes, puzzles, elementos de exploração e inventário limitado parecem algo bem familiar.

Tudo começa em 1998, a unidade Alfa da força policial S.T.A.R.S. de Raccoon City é despachada em busca pelo time Beta, desaparecido após serem mandados para investigar assassinatos na região das Montanhas Arklay. Após serem atacados por cachorros agressivos, o que restou do time Alfa se abriga na Mansão Spencer, uma locação gigante, sinistra e aparentemente abandonada. Tudo levando ao descobrimento de um acidente causado por experimentos científicos para criar armas biológicas.

Parte da carga narrativa de Resident Evil 1 é levada principalmente pelos “Files” que explicam os experimentos e o envolvimento da Umbrella, empresa farmacêutica mega importante da região. Eventualmente, você encontra algum personagem pela campanha e desenrola um pouco do plot principal, que seria o plano maléfico de Albert Wesker ao levar membros do “time de elite” da polícia para testar a efetividade das armas biológicas.

Sendo um produto de uma época que a maioria das histórias e todo aspecto narrativo de jogos eram feitas internamente por amadores, a dublagem é tosca, junto dos diálogos totalmente duvidosos, que foram escritos e traduzidos do japonês para inglês, o que explica muitas estranhezas. A escolha de deixar a dublagem apenas em inglês se tornou "tradição" na Capcom, onde Devil May Cry e Viewtiful Joe seguiram essa direção, sendo que RE começou receber dublagem japonesa apenas com a versão HD do Remake.

A introdução live-action já mostra a influência de filmes de terror, de uma forma bem “rústica”, podemos dizer. O vídeo de apresentação dos personagens com música agitada, chamada para seus nomes e poses é uma das partes mais cafonas de toda franquia, mas ainda é um aspecto que só existiu no primeiro RE. Imagino que foi feita com consciência do absurdo, pois a equipe já era familiar com filmes de terror e sabemos como coisas toscas são parte do charme de algumas obras do gênero.

Fora boa parte do diálogo ser tosco, algumas falas em si tem piadas, geralmente vindo do Barry, mas Chris tem seus momentos. Particularmente, o fato de darem um lado “burro” para Chris, visto que ele não consegue fazer alguns puzzles, só que há um momento específico onde a Rebecca fala sobre a Umbrella e ele não sabe o que é, o que é bem absurdo considerando todo contexto da empresa farmacêutica que praticamente domina Raccoon City.

Outro aspecto único do primeiro jogo são as múltiplas escolhas, incentivando o jogador a rejogar a campanha. Provavelmente, um legado de adventures com foco em narrativa e finais diferentes. A primeira decisão é logo antes de entrarmos na mansão, onde você escolhe entre jogar com Jill Valentine ou Chris Redfield, uma forma interessante de escolher a dificuldade Normal ou Difícil, respectivamente, apesar do lançamento original nos EUA não alertar isso. 

Jill entra na mansão com o capitão do STARS, Albert Wesker, e seu colega bobalhão especialista em armas, Barry Burton. Barry irá ajudar Jill durante momentos chaves da campanha, facilitando a barra do jogador, fora que ela tem oito espaços para itens no inventário e acesso ao lança-granadas, chamado de “Bazooka” nessa versão inicial. Ela também possui um lockpick/gazua que não ocupa espaço no inventário, servindo para abrir algumas gavetas com itens extras.

O outro protagonista, Chris, entra na mansão com Jill e Wesker. Ele tem seis espaços no inventário, seu item exclusivo é um isqueiro de utilidade limitada, e sua side-kick é Rebecca Chambers, a médica e sobrevivente do Time Bravo. Rebecca tem um papel mais significativo, já que Chris não tem algumas habilidades técnicas, não podendo tocar piano e fazer as combinações químicas, então cabe Rebecca irá ajudá-lo. No fim, Chris não tem tantas desvantagens, pois pode aguentar mais dano e correr mais rápido, mesmo com a falta do poderoso lança-granadas, a munição de escopeta aparece com frequência.

Ambos os protagonistas possuem finais diferentes dependendo dos outros dois personagens que você salva, um sendo o auxiliar, Barry ou Rebecca, e o outro protagonista. Enquanto Rebecca é simples de salvar, onde você literalmente tem que salvar ela do ataque de um monstro, Barry precisa da confiança da Jill em pontos específicos, o que faz com que ele não morra em uma cutscene. Já salvar o outro protagonista requer três itens para abrir uma porta e libertá-los de uma cela, o que só pode ser feito no finalzinho.

Dentro da cronologia, todos quatro personagens sobrevivem, fazendo que não exista uma campanha “certa”, visto que Rebecca não aparece na campanha da Jill, Barry não aparece na do Chris e não há sentido das histórias rolarem simultaneamente. Enquanto os heróis são figurinhas carimbadas da série, Barry reaparece em poucos jogos futuros, enquanto Rebecca é protagonista na prequel, RE Zero, e coprotagonista do filme RE Vendetta.

Muitos jogos de terror entendiam como transpor alguns elementos de horror, geralmente sendo limitados a estética e história. Acho que o maior mérito da franquia ao estabelecer o denominado “Survival Horror” foi conseguir pegar o aspecto de exploração e puzzles de jogos adventure e misturar com ação. Enquanto não dá pra sair matando tudo em seu caminho, também é possível lutar contra o que te ameaça. Resident Evil conseguiu colocar o “medo” como parte da gameplay e creio que essa foi a chave de seu sucesso.

É consideravelmente fácil  “assustar”, até mesmo algo básico como Halloween do Atari pode ser tenso só pela presença da música tema e o Michael Myers te perseguindo. Videogames eram classificados como brinquedos infantis, não era algo que poderia ser a casa do gênero horror, o máximo de sucesso com terror nos consoles, são jogos com temáticas de terror, como Castlevania e Ghouls and Ghosts. Enquanto o Japão já recebia algo como Clock Tower no SNES em 1995 e o PC tinha coisas como Phantasmagoria e Dark Seed, no ocidente, o mais próximo que consoles chegaram em títulos populares com terror foi no Mega Drive. A Sega não embarreirava conteúdo com violência, gerando alguns visuais macabros e sanguinolentos com Castlevania: Bloodlines e Splatterhouse 2 e 3. 

No começo da década de 2010, onde houve um boom de jogos de terror simplórios, geralmente focados em jumpscare. Não sou muito fã desse estilo, acho que terror em videogame é melhor quando há uma chance de lutar. Mikami menciona a inspiração em Tubarão, de Steven Spielberg, onde o filme vai montando a tensão ao redor do bicho, chegando até o final, após tanto desespero e luta, o tubarão é explodido e derrotado. Enquanto o "horror" é importante, a parte do "survival" é igualmente ou até mais.

Em Resident Evil, você está preso num local misterioso, onde você não sabe o que está atrás de cada porta, e abrir portas gera uma pequena cutscene, mascarando o loading de maneira genial, e vai chegar uma hora que você vai ter que enfrentar um monstro obrigatoriamente. Curiosamente, é possível sair de uma salas sem enfrentar alguns chefes, como pegar a medalha no sótão sem lutar contra a Yawn, mas ser picado por ela, fará seu personagem ser envenenado e gerar eventos únicos.

Além de lutar, você tem que pensar se você tem tudo o necessário. O gerenciamento de inventário adiciona mais tensão, visto que você tem que ter poucas coisas para garantir espaço o suficiente para os itens obrigatórios para progredir, senão é ir e voltar nas saverooms, ao menos, os baús compartilham os itens que foram depositados. Também existe o fator dos saves serem limitados, tanto pelas máquinas de escrever estarem espalhadas e distantes, quanto precisar da tinta, item limitado e que ocupa espaço no inventário, para poder salvar o progresso.

Claro que RE1 não tem o mesmo efeito de 27 anos atrás, visto que o gênero não é mais novidade e boa parte da graça de terror vêm da surpresa. Os outros títulos da franquia são mais difíceis, especialmente o Remake, então é meio complicado imaginar alguém tendo dificuldades com o jogo atualmente. Talvez devido ao inventário limitado, especialmente por não poder descartar itens, ou combiná-los ao pegar, além de precisar ficar parado para poder atirar, o que leva a uma das reclamações mais padrões.

Os controles de tanque são a base da jogabilidade de Resident Evil clássico. Feitos de uma forma que não seja simples o bastante para manusear o personagem, mas também funcionam devido aos cenários pré renderizados com ângulos de câmera fixos, o que faz o personagem andar numa direção fixa mesmo com a mudança de câmera. Acredito que esses controles vão sempre ser uma barreira para quem decidir jogar os clássicos pela primeira vez, mas sem eles a jogabilidade não faz sentido, tanto que o Remake e RE2 do N64 possuem um esquema de controle "normal" que facilitam demais a navegação.

Pode parecer que você precisa de muitos recursos para lidar com tudo, mas há formas de contornar os desafios iniciais. Ao ser detectado por um zumbi, ele irá em direção ao personagem. Observando um pouco do comportamento, o jogador verá que os zumbis são programados para dar uma andadinha numa direção oposta, o que dá uma brecha para fugir deles sem entrar em combate direto. Zumbis ainda podem matar se te pegarem desprevenido e te cercar, porém os inimigos como Hunters são bem mais perigosos e mesmo estando sozinhos. Aí entra outra vantagem da câmera fixa, pois você pode até ouvir o som dos monstros, mas não saber onde eles estão.

Alguns chefes também podem ser complicados, especialmente a cobra, Yawn, com suas investidas rápidas e batalhas em ambientes confinados, ainda levando em conta que seu corpo ocupa um bom espaço do cenário. Mas com algumas curas e balas, dá pra matar todos na força bruta facilmente. Os chefes acabam sendo mais uma presença ameaçadora e representações dos experimentos absurdos da Umbrella. Até mesmo o Tyrant, “A Forma de Vida Suprema” com seu visual apavorante, não consegue aguentar uns 5 tiros de Magnum.

Claro que eu falo tudo isso após jogar RE1 umas seis vezes, fora o costume que vêm com os outros títulos. O maior aproveitamento desses jogos sempre vai ser a primeira vez, onde você não sabe o que tem atrás de cada porta aberta, ou quando uma armadilha vai disparar. O aprendizado com o tempo é que você vê que não precisa sair com tantos itens, a pistola mal vai ficar no inventário depois de pegar a escopeta e recarregar deve ser feito através do inventário, ao invés de deixar a arma ficar sem munição e o personagem "preso" na animação de recarregar a munição. Após isso, a graça vem de zerar com poucos saves, no menor tempo possível e outros desafios.

Para escrever esse texto, joguei uma versão chamada True Director’s Cut e a versão de DS, Resident Evil: Deadly Silence. RE1 teve diversas iterações, saindo originalmente para o Playstation, depois Saturn e chegando até o PC com um port meio abandonado, apesar de ser fácil de achar e ter suporte de fãs. As mudanças entre versões são pequenas, como a intro live-action colorida e sem censura, roupas extras e novos modos. 

A Capcom já é conhecida por práticas comerciais safadas, então existem três versões de RE1 para o Playstation, e o que recomendo seria o fan-hack True Director’s Cut. Ele é um “best of” de todas as versões, só que o que importa mesmo é ter todas melhorias da Dualshock Ver. junto da trilha sonora original de Masami Ueda, ao invés da trilha sinfônica infame de Mamoru Samuragochi. A música é um aspecto importante da atmosfera da série e não é a toa que Ueda compôs toda trilogia do PSX. As faixas do primeiro são bem sintetizadas, curtas e algumas soam estranhas, mas sempre adequadas, sejam os agitados temas de chefe à clássica e confortável tema da saveroom.

Enquanto o Nintendo DS tem uma resolução baixa, gráficos e som inferiores ao Playstation, as adições são muito bem vindas. É possível pular cutscenes, até mesmo as aberturas de porta, há dois modos, o Classic, sendo a campanha padrão do original, e o Rebirth, onde são realizadas mudanças na jogabilidade. Aproveitando as capacidades do portátil, Deadly Silence adiciona controles de toque, que podem ser usados nos menus, alguns puzzles novos e num minigame de luta com a faca, que é surpreendentemente bom, tendo até um modo chamado "Master of Knifing", focado em ficar esfaqueando todos B.O.W. enquanto você acumula pontos.

O que mais gostei foram as mudanças dos inimigos, pois eles são espalhados em maior quantidade, alguns zumbis são mais rápidos e a Chimera é introduzida antes do laboratório. São mudanças simples que trazem uma dificuldade que falta no lançamento original, junto do fator surpresa, visto que morri mais nessa versão do que todas as outras vezes que joguei RE1. O único defeito do Rebirth é a faca se tornar o item secundário de cada personagem, fazendo o lockpick ou o isqueiro ocuparem espaço no inventário, ao menos você não vai esquecer dela na hora de cortar as teias de aranha.


Entre a trilogia clássica, Resident Evil 1 é meu favorito, o que parece ser incomum. As sequências melhoram muitos aspectos e parecem ser lembradas com mais carinho pela fanbase. Não tenho esse viés, visto que eu morria de medo quando era criança, e a primeira vez que joguei um RE foi através do milagroso port de RE2 para 64 e sua menos milagrosa emulação, e minha primeira experiência com RE1 foi o port de DS em um emulador no smartphone.

Acredito que a ambientação é o ponto mais forte. A Mansão Spencer é uma locação memorável, o layout é icônico, bem como suas diversas salas e segredos. O Remake melhorou praticamente tudo em relação ao mapa, mas o original ainda tem seu charme com suas seu ambiente colorido misturado com modelos 3D rústicos. A progressão natural também é boa, chegar na cabana, um lugar menor mas com inimigos diferentes, voltar para a mansão e ser saudado por Hunters, até chegar no laboratório e o clima ficar mórbido devido à presença de zumbis únicos e a curta presença das chimeras, mas é aí onde a trama se desenrola mais e o jogador descobre as intenções de Wesker.

Acho que todas áreas são interessantes, tirando a caverna com seu layout linear com a necessidade de usar itens esquecidos e a save room ser apenas após o chefe. Até essa fórmula de cenários é repetida na série, sendo um local inicial grande para explorar, um trecho menor, voltar ao local antigo, depois terminar num laboratório.

A era do PS1 foi parcialmente moldada por Resident Evil devido seus cenários pré renderizados misturados com modelos 3D, cutscenes em tempo real com personagens se expressando com os poucos polígonos que tinham, bem como uma dublagem ridícula mas charmosa. Outra decisão importante foi de como criar a história e o mundo, onde tínhamos mais informações do enredo em documentos do que sendo comunicados diretamente ao jogador, além das curiosidades básicas de como a maioria dos BOW foram criados, e as notas de funcionários da mansão antes de morrer ou se transformarem em zumbi, como a memorável "Itchy, Tasty".

Enquanto pode não ser a primeira obra de terror usando armas biológicas, toda a história montada com isso e a correlação com a empresa farmacêutica Umbrella foi uma forma interessante de lidar com zumbis na ficção. Ele foi o primeiro passo de uma IP colossal dentro dos video games, bem como toda cultura pop. Influenciado por diversas obras de terror, acabou se tornando um grande influenciador. Resident Evil é um marco, infelizmente sendo ofuscado por seu excelente remake, mas se o remake é tão bom, é porque a base dele foi um ótimo jogo.

Arte da capa da versão japonesa de Deadly Silence.

Material de referência para escrever o texto:

Director's Hazard - Entrevista com a equipe de desenvolvimento:
https://www.youtube.com/watch?v=ID3tBEDfeeo

Site Project Umbrella que documentou o desenvolvimento:
projectumbrella.net/the-development-of-bio-hazard.html

Entrevista com Kamiya, Sugimura e Mikami depois de RE2:
https://shmuplations.com/residentevil2/

Primeira parte do documentário sobre Shinji Mikami do canal Archipel:
https://www.youtube.com/watch?v=NKYX3GstHlw

Página sobre o desenvolvimento de Resident Evil da RE Wiki:
https://residentevil.fandom.com/wiki/Resident_Evil_(1996_game)/development

Jun Takeuchi entrevistando Shinji Mikami e relembrando 25 anos de RE:
https://www.youtube.com/watch?v=cMC0OPwr_Io

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