segunda-feira, 19 de fevereiro de 2024

Demon's Souls - A Gênese de Souls

Demon's Souls foi o primeiro passo do que conhecemos como a linha “Soulsborne”, isso sem entrar dentro do subgênero de “Soulslike”. A From Software já tinha coisas similares como King’s Field e Evergrace, mas o que se tornou a base de Dark Souls foi Demon’s Souls. Lançado originalmente em 2009, ele foi um exclusivo do Playstation 3 e não foi publicado fora do Japão, até se tornar um dos jogos mais exportados para o console, o que foi o bastante para convencer que um lançamento oficial internacional valeria a pena.

A geração do PS3 foi marcada por mudanças bruscas que já estavam lentamente acontecendo na indústria há tempos. Os jogos ocidentais ficaram mais populares, assim como um game design mais “seguro”, coisas mais cômodas ao jogador, e mesmo os padrões de dificuldade foram se tornando superficiais. Então um jogo japonês que te joga num mundo desconhecido, entrega o básico da jogabilidade e deixa o jogador aprender como funciona tudo é algo que foi totalmente contra a onda de sua época.

Escrevi uma análise do primeiro Dark Souls há algum tempo e destaquei a parte da dificuldade. A série Souls trazia essa veia“old-school” ao ter os checkpoints distantes, inimigos respawnando após a sua morte e as almas, que servem como XP e dinheiro, com a possibilidade de perder todas elas. Demon’s Souls é mais punitivo ainda por limitar a sua vida total ao morrer, sendo recuperada ao matar um chefe ou usando um item específico e limitado.

Ao mesmo tempo que dificuldade é uma parte essencial de DeS, ele é consideravelmente mais fácil que boa parte da franquia, já que enquanto ele pode ser brutal em certos aspectos, o combate é um tanto mais simples. Escudos são úteis, desviar é mais fácil, poucos inimigos dão muito dano e o comportamento deles é mais simples, então é fácil circular alguns deles para acertar um backstab. Mesmo assim, o jogo não deixa de ser divertido e desafiante até para veteranos.

A primeira área com te coloca para aprender o básico através dos textos no chão, esse sendo o sistema de mensagens que têm as dicas dos desenvolvedores, mas também pode ter textos deixados por outros jogadores, o que não ocorre mais na versão de PS3 devido ao fechamento dos servidores. Apesar de não me interessar no componente multiplayer de Souls envolvendo invasões e co-op, as mensagens de outros jogadores são um dos aspectos mais legais da "franquia".

Voltando ao início, após esse trecho do tutorial que lhe entrega o básico dos comandos e uns inimigos fáceis de lidar, você encontra o Vanguard Demon, o primeiro chefe, que tem um padrão simples, só que qualquer ataque pode tirar boa parte da sua vida. É fácil morrer na primeira jogada, e mesmo vencendo, você morre depois e é levado ao Nexus, o hub world, onde ficam as Archstones, servindo como portais para te levar a outros locais chave, como se fossem "mundos", praticamente um Super Mario 64, ou até um Chakan: The Forever Man, se você é mais familiarizado com jogos obscuros do Mega Drive.

Obrigatoriamente, a primeira Archstone te leva aos portões do Reino de Boletaria e essa área inicial dá uma ideia melhor de como vai ser o combate e design de mapa. Os encontros com os primeiros inimigos são simples, eventualmente surgindo cavaleiros mais fortes, mas nada que avançar com cuidado e entender os padrões deles não resolva. O jogo não fica preso nessas obviedades e sempre procura trazer situações diferentes e evoluir o desafio dentro de cada uma das localidades.

O ideal ao explorar cada área é achar atalhos que facilitem sua exploração, já que Demon’s tem poucos “checkpoints”, esses sendo as Archstones conectadas ao Nexus, que aparecem no primeiro local onde você teleporta e outro surge ao matar um chefe. As archstones costumam ser espaçadas e interligadas pelos atalhos, a própria área inicial do reino é na frente dos portões de uma fortaleza, você entra pela parte esquerda, dando a volta por cima e sai pelo lado direito da entrada, onde há o mecanismo para abrir os portões e enfrentar o primeiro chefe “real”.

Eventualmente, o acesso as cinco Archstones são liberadas no Nexus, então você pode explorar cada uma delas na ordem que quiser, tirando algumas barreiras que dependem que o jogador derrote um Arquidemônio, um dos chefes principais de cada "mundo", para poder continuar. Então mesmo ficando empacado em alguma das “fases”, dá pra simplesmente ir para outra e progredir, conseguir mais almas e etc.

Demon's é primariamente um action RPG, então você cria seu personagem customizado e escolhe entre foco em magia, força, destreza e fé. Já tinha jogado uma parte do jogo como mago, e não é minha praia, apesar de facilitar algumas coisas, então dessa vez fui de build de força, como costumo fazer, o que tem sua recompensa ao dar dano enorme, mas as armas pesadas consomem bastante stamina e requerem um atributo a mais para poder carregá-las e ainda ter acesso às esquivas mais rápidas. O básico de todo Souls foi feito aqui, apesar da falta de alguns recursos e armas, dá pra fazer qualquer build padrão satisfatória na primeira run.

As almas ganhas pelos inimigos podem ser convertidas em experiência, onde você pede para a Maiden in Black, sua auxiliar que reside no Nexus, aumentar o nível de seus atributos. O resto você gasta com NPCs para comprar armas, magias e demais itens, bem como melhorar seu equipamento usando pedras para um dos ferreiros forjar. 

O lado negativo dessa parte de inventário é que há um limite de peso, então você pode ficar sem pegar algum loot devido a falta de espaço, e há um NPC que guarda itens para você,  o que não deixa de ser inconveniente, especialmente que um dos ferreiros não fica no Nexus e você precisa levar as pedras certas para poder fazer as melhorias de armas, ao menos ele fica num lugar de fácil acesso.

O que há de especial nesse jogo é um certo elemento comum aos primeiros títulos de uma franquia, ao mesmo tempo que ele pode ser meio truncado e mal polido em algumas áreas, ele é o mais livre para experimentar ideias peculiares. Não há o peso de uma sequência, ou sucessor espiritual, para fundamentar o que os desenvolvedores querem fazer e as demandas de estúdio e dos fãs.

Você vai de um castelo medieval bem comum para uma prisão sinistra e claustrofóbica, de ruínas cercadas de peixes mantas voadores atirando espinhos em sua direção até um pântano venenoso gigante e escuro. A variedade não é apenas visual, como na ambientação e gameplay. Cada cenário traz uma sensação diferente ao explorá-los e entender seus desafios, e é claro que nem todos são ótimos, às vezes são boas ideias e uma execução aquém, mas essas diferenciação e a tentativa de trazer sempre alguma novidade é legal e fazem falta nos jogos posteriores.

Como cada "mundo" é dividido em "fases", ao final de cada fase há um chefe e há sempre um chefe maior para todas localidades, e o mesmo que falei antes dos cenários se aplicam a eles. O combate de Souls não é focado em pura ação, levando em conta que há builds diferentes e você tem que ficar preocupado mais em coisas como a sua stamina e espaçamento na hora de atacar e desviar.

Você tem algo como a Fool’s Idol, uma feiticeira que fica mandando magia a longa-distância, criando ilusões e armadilhas no chão, Phalanx, um arremedo de um seres lesmas escuros que criam uma barreira de escudos e lanças para proteger o núcleo. Até as lutas mais “físicas” possuem algum conceito diferenciado entre si, como o Old Hero, um gigante cego com uma espada, se guiando pelos sons que o jogador faz, com ataques de longo alcance e bem telegrafados, então é fácil de desviar.

Enquanto uns chefes exigem mais calma, bom espaçamento e saber contra atacar, há algo como o Flamelurker, um demônio coberto de chamas com ataques rápidos e alguns causam explosões em área. Para mim, ele foi um dos chefes mais difíceis do jogo, mas da primeira vez que joguei, onde usei uma build de magia, foi um confronto fácil. O Flamelurker tem fraqueza a magia, então um mago tem mais facilidade contra ele, ainda assim, é um dos inimigos mais rápidos e com padrões que podem ser caóticos.

Não costumo prestar muita atenção nessas narrativas de jogos mais vagas, o que costuma ser um dos chamativos de Soulsborne, e Demon's Souls tem isso, mas não deixa de entregar mais diretamente certos pontos e dá pra entender o básico apenas jogando sem se aprofundar tanto.

Seu personagem é um viajante que entrou em Boletaria em busca das almas demoníacas que invadiram o que era um reino pacífico. Você vai entendendo o motivo disso, principalmente toda história do Rei que causou essa catástrofe, e outras coisas como a importância das almas, como alguns estão lutando para salvar o reino, outros lutando apenas pela sua sobrevivência, e outros ficaram loucos, uns até se tornaram os ditos demônios que seu personagem, denominado Slayer of Demons, enfrentará.

Os NPCs são encontrados pelo cenário e eventualmente vão parar no Nexus, seja para te auxiliar, ou apenas terem sua própria jornada. As sidequests são atreladas a esses personagens, que geralmente são mini histórias que você desenvolve ao encontrar esse NPC várias vezes, o problema é de achá-los. Essa parte continua nos jogos da From até hoje e eu não sou muito fã, apesar de fazer parte da forma “livre” que a narrativa e a jogabilidade funcionam, e incentiva alguns jogadores a rejogar, em meio a outros fatores.

Há até duas mecânicas que, em tese, deveriam afetar a narrativa, essas são a World Tendency e Character Tendency, um é um modificador em cada um dos mundos da Archstone, enquanto o outro é de seu personagem. Os dois são uma espécie de sistema de karma que realiza mudanças dentro de Demon’s Souls. É algo que não vai afetar a maioria dos jogadores na primeira run, eu mesmo não fui atrás de explicações da mecânica e joguei sem entender. Acho que o conceito é legal, mas poderia ser melhor utilizado e, infelizmente, não foi reutilizado em outros jogos da From.

Por fim, e não menos importante, a trilha sonora, que por mais que não haja música nos cenários, tirando o Nexus, a maioria delas tocam durante os chefes, e as faixas tem uma pegada peculiar, usando instrumentos de sopro, violino, coro, violoncelo e etc. São escolhas instrumentais estranhas, às vezes, soa meio exagerado ou anormal, o que justamente dá uma vibe atípica ideal ao jogo. Já dá pra ter uma noção de como é a trilha sonora só pela abertura, que em si já é uma intro incrível e a música só a deixa mais grandiosa.

Infelizmente, Demon’s ainda está limitado aos consoles da Sony, sendo que a versão de PS3 perdeu o componente online. Enquanto não pude jogar o remake do PS5 até o momento, posso dizer que ele me surpreendeu bastante pelo gráfico, que diria que é um dos poucos jogos que tem cara de "next-gen", especialmente pela luz, sombra e efeitos de partículas. Parece um jogo falso pra propagandear placa de vídeo.

Também há uma situação meio Super Mario All-Stars, onde algumas das mudanças de direção de arte piorou designs que eram legais e distintos e a HUD é muito polidinha e certinha. Claro que pra tudo há preferência, mas a música rearranjada foi um golpe duro, ela perdeu todo o charme do original e a instrumentação esquisita e macabra. Fora isso, em termos de fidelidade, o remake parece ser tão fiel que cheguei ver vídeos dele para localizar algumas coisas e é praticamente é a mesma coisa, então essa análise vale para o remake... Provavelmente?

Eu joguei Demon's Souls no PC, utilizando o emulador RPCSX3, onde é possível melhorar a performance com um patch de 60fps. Ainda há esperança que o remake surja no PC, e seja lá a forma que você encontre de jogar, só jogue, mesmo quem não gosta de Souls num geral. 

Demon's apareceu do nada e ia contra todas tendências da sua época e conquistou o público justamente por isso. Jogadores veteranos teriam uma sensação nostálgica ao experienciar esses desafios da "velha guarda" e novos jogadores encontrariam algo incomum e com cara de novidade. Com a popularização da From Software, os outros Souls também foram a primeira experiência de muita gente com esse sentimento, especialmente com o primeiro Dark Souls. 

Mesmo após ter jogado toda linha de Soulsborne da From, Demon’s Souls ainda é uma experiência inigualável, e diria até a melhor. Ele nasceu, apresentou os fundamentos, os desenvolvedores foram polindo muito da parte técnica para os sucessores, mas deixaram muitos dos conceitos únicos e experimentais só neste título, fazendo-o um estranho dentro da sua própria vertente e se tornando ainda mais especial.

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