Escrito por Salomão
Ítaca não te iludiu, se a achas pobre.
Tu te tornaste sábio, um homem de experiência,
e agora sabes o que significam Ítacas.
Konstantinos Kaváfis
2009, a evolução dos games parecia se chamar cinema. Lançaram ou estavam prestes a sair obras clássicas importantes como Heavy Rain, Metal Gear Solid IV: The Guns of the Patriots e Grand Theft Auto IV, a narrativa fílmica tomava conta em produções do ínterim 2008-2013, tendo como exemplo mais evidente The Last of Us. Obviamente existiam exceções na (então) geração passada, as obras de Fumito Ueda, que presavam pela mitologia diegética dos games. Porém no mesmo 2009 saiu uma obra estranha, obscura, que era completamente feita para o formato do jogo eletrônico: Demon’s Souls.
Após iniciar o jogo, logo depois dos créditos dos desenvolvedores e distribuidores começava uma brilhante introdução – era um cavaleiro medieval de visual robusto, o mesmo da capa do produto, lutando contra uma horda de monstros demoníacos; o combate seguia, aparecia um esqueleto horrendo que seria acertado por flechas de aliados do protagonista, fantasmas brancos. O cavaleiro e seus aliados fantasmagóricos enfrentavam uma multidão de criaturas, eis que aparecia um dragão que parecia ter saído do mangá Berserk e que rosnava. Tinha como ser mais empolgante que isso? O menu com o título do jogo aparecia. A partir daí o jogador decide como vai ser o seu personagem, as classes típicas do RPG estavam lá: mago, cavaleiro, ladrão. Com essa estética aparentemente tradicionalista era difícil esperar um resultado tão surpreendente, por mais que empolgasse.
Bem, por bem ou por mal esse jogo foi o último que joguei dos soulsborne. Se trata de um exclusivo de PS3, e meu console dessa era foi o Xbox 360, das quatro vezes que zerei Demon’s Souls ele foi gradativamente subindo como um dos melhores jogos de todos os tempos. Para quem nunca o jogou, mas conhece os outros títulos, ele envelheceu um tanto no chamado PvE (player vs enemy), principalmente se jogar de melee, o famoso combate corpo a corpo. Mas se tirarmos nossas análises anacrônicas (oh, um feito difícil – é possível ler Wilkie Collins sem considerar sua obra mais famosa como um romance policial?) teremos o título mais revolucionário da sétima geração de consoles.
Para quem conhece The Legend of Zelda a partir dos jogos de 64 temos uma semelhança interessante: poder travar a mira no seu inimigo. A exploração é central nesse jogo, você pode se perder a qualquer momento e voltar para o início do mapa. E o principal: você deve gerenciar sua stamina, sem ela você não ataca e nem desvia. Rolar é o que há de mais importante nesse jogo, decorar os movimentos dos inimigos e achar uma brecha para atacá-los. Some isso com itens de cura limitados (mas que podem ser comprados sempre), as famosas ervas. Essa é a síntese da gameplay do jogo.
Demon’s Souls, por mais radical que seja, não deixa de ser um pouco conservador (não estou falando de política) em seu formato de design. Você pode ficar perdido, mas sabe que no fundo seu objetivo é sair do ponto A para o B e matar o chefe da área. O jogo é divido em 5 mundos, cada um com suas respectivas subdivisões (1-1, 2-3, 5-2). Ocasionalmente (ou muito raramente) essas divisões se cruzam, como por exemplo, você pega uma chave no 1-5 que abre um portão para um mini-chefe no 1-1. A filosofia de Demon’s Souls se chama curva de aprendizado.
Você pode se amedrontar e morrer dezenas de vezes para um chefe cruel como o Flamelurker (que da última vez que joguei matei de primeira), mas se desistir vai perder a maior das recompensas, a força de vontade. Uma coisa que na época chocou muitos foi para o multiplayer (hoje praticamente desativado, apesar de existirem servidores privados), não existia um “modo online” e sim uma integração entre o jogo e o online. Os jogadores poderiam escrever mensagens no chão para zombar os jogadores ou mesmo ajudarem, poderiam (quando em forma humana) ajudar ou invadir outros jogadores.
A body form se distinguia do soul form por ser completamente física, ter HP completo e acesso ao online. A soul form era etérea, meio transparente, sem som, e tinha a vida cortada pela metade, você entrava na soul form quando morria. Mas nem tudo é desespero, há um lugarzinho que serve como hub no jogo: Nexus, lá encontramos mestres de magia que nos ensinam suas feitiçarias; o primeiro ferreiro do jogo; alguns mercadores (a maioria deles estão espalhados ao longo do jogo) e a waifu Maiden in black, a NPC que upamos o nível do nosso personagem. A partir de um certo ponto da jogatina a música do Nexus muda para um dos temas mais melancólicos e sinistros de todos os tempos:
Demon’s Souls tornou-se rapidamente um cult classic, agradando um nicho que ansiava por jogos mais desafiadores que o usual, mas também ganhou fama de jogo “sem enredo” e “impossível de terminar”. Aliás, a dificuldade foi usada na campanha de marketing desse e de todos os outros soulsborne. A história do jogo é em sua maior parte interpretativa, lembremos de William Faulkner em Absalão, Absalão! – praticamente todo o enredo desse romance vem da polifonia de diferentes interpretações da narração de um mesmo fato – daí surge a lore. Temos pequenos panoramas do reino de Boletaria, totalmente decadente e envolto de melancolia.
Precisamos de muita atenção para entender um letimotiv que cerca toda a obra de Hidetaka Miyazaki: estamos sendo manipulados, dessa vez pelo Monumental. Existem outros tipos recorrentes em sua obra: o traidor (aqui como Yurt), a Moonlight greatsword (que desde os tempos de King’s field, obra clássica da mesma From software que desenvolveu Demon’s), o homem que testa sua misericórdia e paciência (o onipresente Patches), o fluxo do tempo distorcido (que na última DLC de DS3 atinge um novo patamar).
Precisamos de muita atenção para entender um letimotiv que cerca toda a obra de Hidetaka Miyazaki: estamos sendo manipulados, dessa vez pelo Monumental. Existem outros tipos recorrentes em sua obra: o traidor (aqui como Yurt), a Moonlight greatsword (que desde os tempos de King’s field, obra clássica da mesma From software que desenvolveu Demon’s), o homem que testa sua misericórdia e paciência (o onipresente Patches), o fluxo do tempo distorcido (que na última DLC de DS3 atinge um novo patamar).
Miyazaki explora a efemeridade muito bem, quando vemos personagens lendários como Doran e Old Hero em um mundo praticamente distópico nasce aquele sentimento de melancolia tão raro de se ver. O silêncio diz muito sobre a tonalidade da obra, apenas em momentos realmente importantes temos a música, uma trilha sonora poderosa. O infame mundo 5, o primeiro pântano venenoso que conhecemos pode ser irritante em certo ponto, mas não existe sentimento amargo como o encontro com Maiden Astraea – tudo devastado, mórbido, uma colagem de horror com presença de abortos vivos e doença. Tudo por uma alma. Nem tudo é tão devastador, o Tower Knight é um dos momentos mais icônicos dos games modernos, uma luta épica que parece ter sido retirada do conto do cavaleiro de Chaucer, um confronto contra um batalhão de atiradores e um guerreiro colossal.
Mas também existem coisas controversas que acredito que Miyazaki não repetiria se dirigisse esse jogo hoje:
1- As tendências, de mundo e de personagem, que fazem com que o jogador jogue com muito cuidado. É interessante, mas foi substituída nos jogos posteriores pelas quests dos personagens.
2- O NG+, que aqui é um festival de rolls. Acho divertido, mas um tanto exagerado cães darem o mesmo dano que o Penetrator.
3- A pouca variedade de armaduras. Relevo porque a fluted vale ouro.
Não podemos criticar isso só por criticar. O diretor estava em início de carreira ainda, ele melhorou completamente. Vejo pessoas fazendo algo parecido com Sekiro – a narrativa de Shadows Die Twice pode realmente ter algumas falhas (que acho bobas), mas relevemos que foi a primeira obra com storytelling tradicional do Miyazaki em mais de 10 anos, ficou ótimo. Se Elden Ring tiver uma narrativa mais próxima de Sekiro (acho improvável, pois ele promete ser mais próximo de Dark Souls) com certeza vai melhorar muito o que já era ótimo.
O que seria de nós sem esse jogo? Provavelmente eu não conheceria a indústria de games japonesa, estaria preso no lugar comum. E acho incrível
Como Souls vem crescendo e popularizado. Demon’s souls é uma obra-prima singular e deve ser jogada por todos que se interessam por games em geral. Dificilmente será lançado um título tão revolucionário quanto esse. Aliás, o poema do Kaváfis que usei como epígrafe resume muito bem a como em uma jornada tão difícil a recompensa maior é o aprendizado, isso é Souls.
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